Registros de canavieiros nordestinos esquecidos em sótão de Londres reaparecem após 3 décadas

08/08/2018 às 16h47 | Fonte: www.olhaafoto.com | 550 Exibições.

s rugas são as mesmas há 31 anos. Foi a cana que manteve seu Antônio igual por tanto tempo. Se ele bebia, é difícil dizer. Só sabemos com certeza que tomava água durante o trabalho, assim como os colegas, em garrafões plásticos de produtos de limpeza que as mulheres reaproveitavam. Mas seu Antônio era, de certa forma, movido a álcool, o combustível produzido com a cana-de-açúcar que ele colhia todas as manhãs.

Desde 1987, nunca lavou as mãos pretas, não fechou mais do que um botão da camisa - o segundo do pescoço para baixo –, não tirou da cabeça o chapéu de palha com um rasgo simpático na frente e não aparou o bigode que faz sombra para algo que tanto pode ser um sorriso quanto um lamento permanente nos lábios.

Quando foi encontrado no porão de uma casa em Londres, há dois anos, seu Antônio nem sonhava que ganharia toda aquela atenção na entrada do prédio bonito que fica a uma breve caminhada de distância do Parlamento Britânico e do Palácio de Buckingham, onde mora a rainha Elizabeth II. Da mesma forma, os conterrâneos dele não imaginavam que viriam a ser libertados, comentados e celebrados nesse pedaço nobre de chão tão distante daquele onde nasceram.

“Antes eles eram invisíveis, agora não são mais. Todo mundo pode ver essas pessoas.”, conta Paulo Pimentel, o jornalista que encontrou seu Antônio e os outros enquanto limpava o sótão de casa.

Um dos primeiros a acenar para Paulo foi seu Francisco, mais um jovem que, assim como seu Antônio, envelheceu antes da hora e depois ficou preservado para sempre naquele cômodo cheio de tranqueiras. Ao contrário de seu Antônio, no entanto, seu Francisco não permaneceu completamente parado. Ora estava naquela posição de aceno com os olhos espertos que acompanhavam para qualquer lado quem o encarava, ora usava o facão para separar da terra queimada um pedaço de cana.

Hoje, quem respira diante seu Francisco ainda sente um pouco do cheiro das cinzas que grudaram nas calças e nos pés descalços do homem há quase três décadas. O sol nordestino também queima um pouco os cabelos de quem o encara sem vestir um chapéu de palha boa. E, se ficar em silêncio, o visitante pode chegar a ouvir a música que seu Francisco cantava por dentro para se sentir mais vivo a cada golpe que dava na cana antes de levar para casa o pão.

Algumas famílias, naquela época, nem esperavam a comida chegar. Iam juntas para o canavial. No meio das cobras, das cinzas e do sol, tinha criança cortando, colhendo, carregando, pensando, tentando entender. Qual é o tamanho da sorte de nascer já com uma profissão naquele pedaço fértil de chão? Pai e filho, mãe e filha, mãe e filho, irmãos pequenos. Idade mínima não existia. Com pressa, algumas crianças iam trabalhar até dentro da barriga da mãe. Era uma gestação orgulhosa na lavoura que levava o Brasil para a frente.

O governo incentivava a produção de álcool combustível para diminuir a dependência da importação de petróleo. Para isso, oferecia incentivos fiscais e empréstimos bancários com juros abaixo da taxa de mercado para os produtores de cana-de-açúcar. Seu Antônio, seu Francisco e a colega dona Maria eram alguns dos sortudos que trabalhavam para os fazendeiros e recebiam, em vez de salário, um crédito para comprar alimentos em determinados armazéns. É verdade que, mesmo só trabalhando e comprando comida, muitos acumulavam um débito eterno com os patrões. Mas isso, por outro lado, facilitava a permanência definitiva deles naquele emprego. Quem poderia reclamar?